O Que Os Espíritos Dizem

A Esmola

Outro dia, acompanhei estarrecida uma postagem no Facebook onde ricas senhoras de um bairro nobre reclamavam da inconveniência de uma pedinte, que faz ponto em determinado supermercado.

Com escrita repleta de maiúsculas e pontos de exclamação, esbravejavam sobre o absurdo de serem abordadas, sempre no mesmo local, pela profissional da mendicância, que contava sempre a mesma história. “Trabalhar que é bom ninguém quer”, foi o que mais se ouviu.

Algumas disseram que ofereceram faxina na própria casa, mas que a “folgada” recusou.

Foram insultos, impropérios, julgamentos, e a sentença: a moça vivia da malandragem, era preguiçosa, não queria nada com o batente, e fazia um bom dinheiro explorando os outros na rua. Decretado: ela não presta. É mentirosa. Não caiam na conversa dela. Não ajudem!

Fiz um comentário sobre “não julgar” e fui quase escorraçada. Me disseram que, ao criticar, eu é que estava julgando. Não deixa de ser verdade...

Mas fico pensando o que é que leva pessoas cultas, bem educadas, de vida confortável, ter um olhar tão afastado da realidade. Quanto precisa ser o distanciamento da vida real, para fazer essa leitura tão rasa da condição humana?

Convenhamos que oferecer faxina a uma pedinte, que provavelmente não se alimentou direito, em câmbio de uns trocados, está mais para exploração do que para caridade. Ensinar o “valor do trabalho” a uma necessitada, em benefício próprio, está longe de ser uma contribuição à sociedade.

Sempre me incomodou a discurso daqueles que defendem não dar esmolas, e nem ajudar, para que os pedintes não se “acostumem” com o “dinheiro fácil”. Nunca me pareceu fácil o parco dinheiro ganho às custas da humilhação, dos dias ao relento sob sol e chuva, do descaso e do desrespeito.

Os donos da razão são cruéis. Os que tudo sabem muitas vezes parecem desconhecer que a esmola pode servir para levar aos filhos o alimento – e não para alimentar o vício. Que pode ser para o pão, e não para a cachaça.

Os que dizem “não dê esmolas, para que não se acostumem” querem, na verdade, que eles se acostumem, sim. Que se acostumem à miséria, à fome, ao abandono, à discriminação, ao dedo acusatório – mas sem reagir! Que aceitem passivos a migalha e nunca, nunca se rebelem. Porque lugar de bandido é na cadeia, e bandido bom é bandido morto.

Uma vez ouvi de uma filhinha de papai, que nunca trabalhou na vida e resolveu abrir uma ONG com o dinheiro que ela não lutou para ter, que só fornecia cesta básica para as mães que aceitassem tomar pílula ou fazer qualquer intervenção para não ter filhos. Afinal, “pobre não pode ter tanto filho assim”! Para essa gente sem noção, diminui-se a pobreza impedindo que procriem. Bom, se não diminuem a pobreza, diminuem pelo menos o número de pobres...

Essa visão tosca do mundo pode causar mais danos do que se imagina.

Há muitos anos eu participei de um grupo que levava sopa a moradores de rua. Lá conheci uma jovem mãe, de duas crianças pequenas (creio que entre 2 e 5 anos). Ela viva em um barraco, que a chuva levou. Sem dinheiro e sem moradia, foi viver com os filhos em um buraco no pilar de um viaduto na Av. 23 de Maio, em São Paulo. Ela se escondia à noite com os filhos no buraco, com medo da violência urbana. De dia, como não tinha com quem deixar as crianças, pedia ajuda nas ruas. Às vezes conseguia vaga nos albergues, mas para isso tinha que ficar longas horas na fila, o que era difícil com dois pequenos.

Não nos pedia contribuição em dinheiro, mas deixava escapar que as crianças estavam sem roupa, ou que gostavam desse ou daquele brinquedo. Era cuidadosa com os filhos, não os perdia de vista, mostrava-se afetuosa e preocupada com o seu bem-estar. Mas, no nosso grupo, também havia donos da razão... e uma das voluntárias, dona absoluta da verdade, achava um absurdo aquela mulher expor duas crianças pequenas à mendicância e à vida nas ruas, e resolveu fazer justiça com as próprias mãos: informou o Conselho Tutelar, indicando inclusive onde as crianças poderiam ser encontradas.

Como resultado, as crianças foram retiradas da mãe e enviadas a um abrigo. E a justiceira, que sabia o que era melhor para as crianças, fez a proeza de destruir três vidas de uma só vez.

A mãe ficou desesperada. Uma tristeza profunda abateu-se sobre ela. Envelheceu anos, em poucos dias. Só chorava, e pedia ajuda para reaver os filhos. Ela não entendia por que os filhos foram tirados dela... afinal, ela lhes dava tudo o que tinha. E o que ela tinha era, circunstancialmente, a vida nas ruas.

Os filhos que agora tinham camas limpas e um teto, perderam o aconchego da mãe. Talvez pensem que ela os abandonou.

Não sei como essa história acabou. Mas, seja como for, uma ruptura de cicatrizes profundas foi feita em três vidas. Como um golpe de facão, certeiro e impiedoso. Tudo isso porque, em algum momento, uma pessoa, dona da razão como as madames do post no Facebook, ficou incomodada com a condição de pedinte da mãe, e resolveu agir. Agiu de acordo com a “sua” verdade. Para ela, aquela era mais uma pedinte preguiçosa, que não queria nada com o batente, e talvez tivesse até “alugado” as crianças...

E assim, aqueles que nunca passaram fome, nem privações, determinam, do alto de seu saber e de seu conforto, quem merece ou não a compaixão alheia. Não lhes passa pela cabeça que o pedinte na rua não teve escola, veio de um lar desestruturado, vive de maneira precária, e o dinheiro “fácil” que ganham nas ruas é suficiente apenas para subsistir.

Que ouvem mais não do que sim. Que a única certeza em suas vidas é a necessidade, e a miséria. Que nunca foram a restaurantes e nem ao cinema. Que não podem entrar em shoppings, e muitas vezes, nem nas igrejas. Que passam vontade, o tempo todo. Vontade do biscoito, da roupa, do passeio, da refeição, do descanso, do ar quente, do cobertor. Vontade de ser aceito, de ser respeito, de não viver à margem de tudo. Vontade de ter oportunidade, de mudar de vida, de tirar férias.

Por isso, sempre que posso, eu dou esmolas. Que me contem suas histórias e eu caia que nem patinho. Que me façam de trouxa, e daí? E daí, que eles vão se acostumar? Não me cabe julgar! E daí que vão comprar cachaça? Quem sabe, eles precisem da cachaça para suportar a fome e o frio da noite ao relento, assim como Febemzinho.

Não creio que endurecer o coração seja o melhor caminho... então, se puder ajudar, ajude! Ajude sem julgar! Estenda a mão sempre que puder. Respeitosamente.

Nunca se sabe das lutas daqueles que estão perambulando pelas ruas. Não se sabe de suas tristezas, de suas dores, de suas desilusões. Não se sabe do preço amargo que estão pagando por suas escolhas. Aliás, não se sabe nem se foram realmente escolhas.

Pode-se sempre optar por ter o coração duro e não se deixar sensibilizar pela miséria alheia. Ou optar por ser a luz em meio às trevas da alma. Levar a ajuda material, mas também a palavra que conforta, o sorriso que alenta.

Não ser juiz, ser apenas humano. Não questionar se o dinheiro vai servir para alimentar-lhes os vícios. Nunca saberemos o destino de nossas esmolas. Nem nos cabe saber. E nem interessa. Elas podem servir a um bom propósito. Ou não.

Uma vez li que sempre fica um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas. A compaixão é isso, é um ato de amor. Que a esmola seja, então, um ato de amor abnegado. Sem julgamentos ou sem ter a pretensão de determinar o que pode ou não ser feito com a nossa doação.

Muitos dos que perambulam pelas ruas, estão em busca de dias melhores. Outros, é verdade, já desistiram. Aceitam simplesmente a sua condição sub-humana, e apenas sobrevivem, pedindo migalhas, aceitando sobras. Entregaram os pontos. Eu entendo. Às vezes, a vida nos vence...

Por Liz Bittar em 10 de Janeiro de 2020

Os artigos publicados na seção Reflexões, por Liz Bittar são, como o nome diz, minhas reflexões pessoais, e não constituem material doutrinário,
nem refletem posicionamento oficial da doutrina espírita. Eles refletem, entretanto, o que eu assimilei da doutrina, e o impacto que esses ensinamentos têm na minha vida,
em minhas escolhas pessoais, e na minha forma de ver o mundo.

Como material de consulta sobre o espiritismo, recomendo as obras de Allan Kardec e os mais de 500 livros de Chico Xavier.
Os artigos desta seção são apenas reflexões pessoais, ou narrativas de experiências pelas quais passei.

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