O Que Os Espíritos Dizem

Abençoado Perrengue

A foto que ilustra esse artigo retrata muito bem o que passei. Atravessei uma crise “braba”, e o que narro a seguir não é apenas a crise, mas principalmente, suas consequências.

Tempos atrás, essa exposição seria impensável. Um dos benefícios do “abençoado perrengue” foi não dar mais importância à pergunta: “O que será que vão pensar de mim?”

ABENÇOADO PERRENGUE

por Liz Bittar, em Out 2009

Assim como Fernando Pessoa, “nunca conheci quem tivesse levado porrada”. Nascida em berço de ouro, também fui, como descreve o poeta, campeã em tudo.

Com acesso a boas escolas no Brasil e no exterior, e bastante tempo livre para ler e estudar, aprendi 5 idiomas que, pensei, seriam minha garantia se todo o resto falhasse.

Comecei a trabalhar aos 15 anos, não por necessidade, mas por anseio de liberdade. Por temperamento, sempre fui empreendedora. Hoje compreendo que o que está por trás dessa vocação é a incapacidade de submeter-me aos demais, e a necessidade de comandar.

O ingresso precoce no mercado de trabalho não me impediu de extrair da vida o que ela tem de melhor: Viajar seis meses pela América Latina, passar um ano explorando os States, morar na Inglaterra, estudar na Suíça, viajar pela Europa de mochila nas costas, sem data pra voltar. Tudo isso eu fiz, num tempo sem angústias ou preocupações. Um tempo de calmaria, de desejos satisfeitos. Um tempo que entorpece a alma, com a ilusão de durar para sempre.

Mas os ventos da prosperidade não raras vezes trazem consigo também a soberba, o orgulho, a vaidade. É bem verdade que os miseráveis precisam mais de Deus do que os bem nascidos, já que a comunhão com o Alto exige a humildade de saber-se pequeno.

Por criação, mais do que por convicção, a religião sempre fez parte da minha vida. Ainda que a prática religiosa seja externa, mecânica, ritual, não deixa de trazer consigo a lembrança dos Valores que representa. Eles ficam guardados em algum lugar da alma, esperando o momento de eclodir.

Pode ser que os anos de esquecimento provoquem a combustão que os liberam, arremessando-nos como um turbilhão para longe de tudo o que já não serve mais. São tormentas reparadoras, que nos assolam com a violência necessária para não nos permitir recuar. Só então percebemos que os sinais já estavam todos ali. Nos afetavam de maneira branda, quase tímida, insuficiente para quem escolhe enganar-se. O golpe, então, para ser eficaz, precisa ser implacável.

São as situações da vida às quais não podemos escapar; elas simplesmente ocorrem. Um dia acordamos, e não temos mais o controle.

Alguns de nós não nos preparamos para sermos diferentes. Não nos preocupamos em equipar nossas almas e construir alicerces para nos salvaguardar. Por anos a fio, assim, sem perceber, tudo o que fazemos é nada mais do que um plantio – e não temos a precaução de nos resguardar para o momento inexorável da colheita.

Quando, de golpe, perdi a realeza, mantive a majestade com todos os seus atributos; o gosto pelo belo, o orgulho, um velado desprezo pelo ordinário. Foi preciso muito tempo para extirpar das minhas entranhas convicções tão arraigadas. O golpe teve que ser, então, duradouro. Por Amor, Deus permitiu que eu experimentasse provações para abrir-me os olhos, e tocou-me no que me era mais caro: eu mesma.

O desapego me foi imposto por situações nas quais assisti, ora contrariada, ora estupefata, os meus antigos valores caírem por terra. Posição, beleza, riqueza, status, influência, poder de escolha, poder sobre as pessoas, aparência, juventude, onipotência. Tudo foi se esvaindo, irremediavelmente tirado, arrancado de mim. Por Misericórdia, Deus me brindou com a perda de um a um.

A vida começou a me dizer não. Perdi primeiro o poder econômico, mas, pior do que isso, perdi a possibilidade de trabalhar. Inexplicavelmente, para quem conhece meu perfil profissional e experiência, passei anos às custas de alguns poucos trabalhos esporádicos, muito embora tivesse feito da busca por oportunidades de trabalho, a minha principal atividade. Para instruir-me sobre perdão e humildade, Deus me impôs o ócio.

Na solitária batalha contra o desânimo e a entrega, utilizei o tempo também para aprimorar-me profissionalmente, manter-me atualizada, atenta a novas possibilidades. Assim alimentava-me, a cada derrota, para outras tantas tentativas. Inúmeros foram os projetos não realizados, a espera sem respostas, as expectativas frustradas. Por Soberana Justiça, fechando-me todas as portas, Deus colocou-me frente a frente comigo mesma.

Precisei da caridade do meu pai para sobreviver, e não raras vezes recorri a amigos, anjos que Deus nos envia para representá-Lo. O dinheiro vai então, pouco a pouco, perdendo a importância; quando ele falta, o que nos sustenta são os ouvidos pacientes, a presença, as pequenas atenções, um quebra-galho aqui e ali, o incentivo, os elogios, ainda que premeditados, carinhosamente derramados sobre nós como bálsamos para nos alentar e reerguer.

Na falta da opulência o ser se encolhe, e sobra mais espaço para perceber os outros… O espelho, entretanto, é a representação de tudo o que fomos e ainda aparentamos ser. É um consolo, quando a gente se olha, e enxerga o que quer. Foi preciso, então, extirpar esse outro câncer da alma; não o espelho, mas a auto-imagem.

As novas experiências, ainda não bem assimiladas, fizeram com que eu me abandonasse na incompreensão da minha dor, e externasse o peso e a fatiga pelo fardo que eu não estava suportando carregar. Meu corpo passou pelas mesmas transformações da minha alma; ficou pesado, lento, arcado. No rosto, a representação visual de cada noite insone; os olhos cansados, caídos, inchados. Por Comiseração, Deus permitiu que minha imagem me fosse tão desagradável aos olhos, que dispensei o espelho.

Amigos de outras épocas desapareceram. Amigos cujas afinidades não mais compartilhávamos. Não por opção, eu não mais me encaixava entre eles. Por Imensa Bondade, Deus afastou-me das escolhas erradas.

Os sonhos de uma vida sem máculas para o meu filho, entretanto, sempre perduraram. Cada “não” que fui obrigada a dizer me atravessou o peito como um punhal. Cada passeio negado, cada brinquedo deixado na loja, cada vontade reprimida me atormentaram mais do que o mais cruel dos castigos. Desde as coisas mais simples, como idas ao supermercado, passaram a ser controladas. Não podíamos nos permitir excessos de qualquer ordem, e a palavra “ponderação” passou a integrar nossas vidas. Por Piedade, Deus me ensinou a distinguir prioridades.

Foi preciso encontrar outras formas de lazer: caminhadas de mãos dadas com uma parada no banco em frente ao lago, pra admirar e conversar. Dias a fio passados sozinhos, em casa, para poupar os parcos recursos, foram gastos com projetos; internet, leituras, estudos. E, no forçoso e extenuante trabalho doméstico, a cumplicidade. Por Compaixão, Deus colocou na minha vida luz em forma de gente, para me mostrar o verdadeiro significado da palavra “doação”.

Os valores impregnados em mim pela prática religiosa, e adormecidos pelas facilidades da vida, foram, então, eclodindo e fazendo sentido. Compreendi a importância da fé como sustentáculo da alma, quando passa por aprendizados. E tive a preocupação de repassá-los ao meu filho, em conversas, estudos e leituras orientadas. Mas, para ele, não eram apenas teorias; eram exemplos, extraídos de nossa própria experiência. Por Divina Graça, Deus enviou a tempestade que varreu de nós a descrença, o distanciamento, a indiferença.

Os anos difíceis me trouxeram amadurecimento, amizades indeléveis, e muitas lembranças memoráveis. Momentos inesquecíveis nos quais Deus me sinalizou caminhos e revelou possibilidades. Eu entendi que nada foi em vão; nem mesmo as duras vezes que tive que negar, privar meu filho de alguns desejos, impor limites para uma infância planejada para ser plena, leve, isenta de tristezas e amarguras. Uma infância para nunca conter prantos, ou ser atormentada por preocupações. Como toda mãe, chorava escondida de noite no quarto, ou no chuveiro. Sempre me culpei por deixar transparecer o meu desespero, e achava que tanta instabilidade iria prejudicar sua formação. E com Infinita Sabedoria, Deus me concedeu a oportunidade de oferecer ao meu filho muito mais do que o dinheiro pode comprar :

Certa vez, aos oito anos de idade, ele recebeu um convite da mãe de um amiguinho, para levá-los ao cinema. O filme era Harry Potter – como recusar? Fomos rapidamente ao caixa eletrônico, e retirei os últimos R$ 30,00 que me haviam sobrado. Era tanta alegria no rostinho dele, que nem liguei para o resto das compras da semana, ainda por fazer.

Quando voltaram, a mãe do amigo contou sobre o passeio, enquanto ele permaneceu na porta, com as mãos no bolso. Ela contou que teve que insistir para ele comer pipoca, mas que depois do filme ele não quis tomar lanche no McDonald’s. Apesar da insistência, recusou até o sorvete e a coca-cola. Não me impressionei e, despreocupada, disse a ela que esse meu magrelo nunca foi guloso, e sempre deu trabalho pra comer. É a pura verdade.

Assim que saíram, eu perguntei a ele se tinha se divertido. Ele acenou com a cabeça e, tirando as mãos do bolso, me entregou R$ 18,00.

-“Toma, mamãe, guardei pra você.”

Por Liz Bittar em 08 de Outubro de 2009

Os artigos publicados na seção Reflexões, por Liz Bittar são, como o nome diz, minhas reflexões pessoais, e não constituem material doutrinário,
nem refletem posicionamento oficial da doutrina espírita. Eles refletem, entretanto, o que eu assimilei da doutrina, e o impacto que esses ensinamentos têm na minha vida,
em minhas escolhas pessoais, e na minha forma de ver o mundo.

Como material de consulta sobre o espiritismo, recomendo as obras de Allan Kardec e os mais de 500 livros de Chico Xavier.
Os artigos desta seção são apenas reflexões pessoais, ou narrativas de experiências pelas quais passei.

Se desejar postar meus artigos em seu blog ou site, por favor, lembre-se de citar a fonte/autoria e o endereço deste site.

OBRIGADA

Outros Artigos em "Reflexões"

Mantendo a Serenidade

Quero Mudar de Vida