O Que Os Espíritos Dizem

Febemzinho

Ele existiu de verdade. Tinha um 9 ou 10 anos quando o conheci. Era um menino franzino, desconfiado a princípio. Sempre sujo, descalço, o cabelo duro pela falta de shampoo. Sincero, amoroso e muito educado.

No início dos anos 90 eu tinha um cachorro grande e um apartamento pequeno; a solução era levá-lo todos os dias à praça perto de casa. Às vezes à tarde, às vezes à noite, e às vezes até de madrugada. Eu não tinha medo; todos me conheciam. Todos os que se pode encontrar pelas ruas de madrugada: os moradores de rua.

Febem fazia parte de um grupo de crianças que fez da praça endereço fixo. Dormiam sob as marquises em dias de chuva, e no gramado da praça no verão. Se alimentavam da caridade de garçons dos bares e restaurantes da praça – desde que se mantivessem longe dos fregueses, e não aparecessem em horário de movimento.

Guardavam carros, recebiam uns trocados aqui e ali, serviam de “avião” para policiais corruptos e, como toda criança, brincavam! Ah, como era bom vê-los correndo atrás do meu dócil Collie, jogando pauzinho, bola, brincando de pega-pega. Riam alto. E não falavam palavrão na frente da “tia”, por respeito.

Eu passava horas sentada no banco da praça, conversando com eles, rindo e aprendendo, muito mais do que ensinando.

Aprendi que alguns estavam na rua por opção; para fugir da violência doméstica, de pais alcoólatras e mães descuidadas. Outros, nasceram nas ruas; os pais estavam por aí, também pelas ruas. Outros eram filhos de presidiários, ladrões e assassinos, que apareciam, entre uma prisão e outra.

Febemzinho não falava de seus pais; dizia que não sabia quem eram. Ganhou o apelido pelas suas muitas idas e vindas à antiga Febem. Aparentemente, era sozinho no mundo.

Me contou que não usava drogas, mas que começou a beber aos 6 anos de idade. Quando a fome é muita, eles não conseguem dormir. A cachaça, sempre disponível entre os maiores, é o lenitivo que aplaca tanto a fome, quanto o frio. Em noites gélidas e chuvosas, disputando pedaços de papelão, o sono só vem depois de muita cachaça.

Contou também que, vivendo nas ruas, nunca conseguiu juntar nada de seu. Se ganhasse alguma roupa, tinha que vestir; era tirar o agasalho um minutinho quando o sol aparecia, e pronto... o que iria fazer tanta falta de noite, era imediatamente surrupiado por alguém maior e mais forte. Nessas horas, o melhor é se calar.

Se, por um lado, haviam disputas internas, por outro o bando se protegia. Mais de uma vez, me acompanharam até em casa. “Tem uns caras assaltando a área hoje, tia. É melhor não andar por aí sozinha, não”.

Uma tarde baixou polícia na praça. Foi todo mundo parar no camburão – inclusive eu. Eles estavam “fazendo uma limpeza” na praça. Muito ríspidos e ameaçadores, tiveram que ser mais rápidos que os meninos, que saíram em debandada quando os avistaram. Foi preciso, claro, uma ação mais “enérgica”, para conseguir pegar a todos.

Só tive tempo de me explicar depois de todos devidamente “capturados”. Me pediram desculpas, me ajudaram polidamente a sair do camburão e até me cumprimentaram pelo cachorro, que aguardava sem alarido próximo à viatura.

Não pude intervir em favor das crianças. Eles foram levados e apareceram dias depois. Mais sofridos. Desesperançosos. Não me animo a repetir aqui o relato de Febemzinho, sobre os abusos e algumas práticas às quais “o homem” os submetia. Pela primeira vez, senti revolta e muita raiva na fala dele. Fome, pobreza, abandono, frio, faziam parte de seu cotidiano, e ele aceitava. Mas isso... era degradante, imoral! Isso, mais do que qualquer outra coisa, esfregava na cara de cada um deles a tamanha desvantagem que levavam no mundo. Entretanto, não era nenhuma novidade. Cada vez que eram levados, sabiam exatamente o que os esperava. E também sabiam que, mais dia menos dia, seriam soltos; era uma questão de tempo, e de “bom comportamento”.

Imagine, então, uma sociedade de meninos que, dos 5 ou 6 anos até a maioridade, sofrem os mais diferentes abusos, são expostos sem piedade à lei do mais forte, passam por privações e não vislumbram futuro. Alimentam-se de cachaça, depois cola, e finalmente crack. Não tardam em perceber que uma boa ferramenta de trabalho é o revólver. Se não for de verdade, o de mentira também serve.

Não estou alegando que todos os policiais sejam corruptos ou devassos, nem defendendo infratores e muito menos fazendo apologia do crime.Ao contrário; já fui, mais de uma vez, vítima de menores assaltantes e sei como essas experiências podem ser traumáticas; foi por causa de um assalto à mão armada que decidi morar no interior, longe da cidade grande. Ainda assim, cada vez que vejo um menino perambulando pelas ruas, visivelmente drogado, lembro-me invariavelmente de Febemzinho e sua “gangue”.

Fui morar fora do país por uns anos, mas ainda encontrei Febemzinho tempos depois, já moço. Me reconheceu, e com a mesma fala rápida de quando criança, veio logo me contar as novidades; quais deles tinham sido assassinados, quem estava preso, quem estava viciado em crack, quem teve filho que o Estado tomou e mandou para abrigos, quem tinha “saído dessa vida”. Febemzinho estava esperançoso porque tinham lhe prometido um trabalho de vendedor, e não precisava ter instrução. Quanto rezei para que desse certo, mas nunca cheguei a saber.

Peço a Deus por ele todos os dias. Me sinto em débito com ele; uma vez, me fez um pedido: Disse que a coisa que mais queria era ir morar num daqueles lugares “onde os meninos vestem roupa tudo igualzinho”. Descobri que se tratava de um orfanato católico, só para meninos. Fomos lá duas vezes. Da primeira, não conseguimos passar nem do portão. Da segunda, chegamos até a recepção, de onde pudemos ver o pátio com o jardim bem cuidado. Mas não fomos atendidos.

Talvez o destino de Febemzinho tivesse sido diferente. Talvez fosse essa a chance que ele esperava, para que sua vida mudasse. Quanto desejei que tivesse sido assim!

Da última vez que nos vimos, depois de nos despedirmos, Febemzinho me chamou de volta.

“Tia!”

Virei-me, para então ouvir:

“Obrigado por tudo.”

Entretanto, sou eu quem tenho que lhe agradecer. Depois de tê-lo conhecido, nunca mais pude enxergar nenhum desses meninos como meros “marginais”. Deixaram de ser estorvo, para serem outros Febemzinhos. Cada um deles me traz a lembrança desse menino tão querido, e de sua história. Cada um deles merece minha compaixão e minhas preces: “Febemzinho... Obrigada por tudo!”

Por Liz Bittar em 19 de Dezembro de 2009

Os artigos publicados na seção Reflexões, por Liz Bittar são, como o nome diz, minhas reflexões pessoais, e não constituem material doutrinário,
nem refletem posicionamento oficial da doutrina espírita. Eles refletem, entretanto, o que eu assimilei da doutrina, e o impacto que esses ensinamentos têm na minha vida,
em minhas escolhas pessoais, e na minha forma de ver o mundo.

Como material de consulta sobre o espiritismo, recomendo as obras de Allan Kardec e os mais de 500 livros de Chico Xavier.
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